terça-feira, 20 de julho de 2010

Geysa e o guêiser








Geysa não tinha pernas. Perdeu-as num acidente de trem. Eu não sei os detalhes. Ficava na cadeira de rodas vendendo flores e soldados a pilha que se arrastavam e atiravam. Era na Estação, a meio caminho entre a Biblioteca e o Estádio. À noite, seu tio desempregado a buscava numa Brasília. Dentro, ficavam tupperwares vazios, cheio das migalhas de doces e salgados vendidos. Ele a erguia no ar, os olhos curiosos secavam os cotos das coxas morenas sob os holofotes dos faróis de carros, viaturas e coletivos no trânsito congestionado de início da noite.

Um dia, o tio avisou: melhor não irmos amanhã. Imagina, amanhã não vai ter nada, fica sossegado. Ela emprestou um vestido vermelho da vizinha. Usou uma calcinha branca. Melhor perfume falsificado. O tio não quis levá-la quando a viu daquele jeito. E ela, "imagina, eles são todos gente de bem". A Brasília parou, o tio armou a cadeira de rodas e a banquinha. Ligou alguns dos soldados. Retirou as flores murchas. Colocou uma mais ou menos no painel do carro. Despediu-se.

Lá pelo meio da tarde, começaram as sirenes. Depois os cavalos e a tropa de choque. As pessoas começaram a correr no sentido do Estádio. Um cavalo acompanhava estes fugitivos, o pé preso no estribo e um policial arrastado no asfalto.

Ela desviou o olhar. De longe, depois dos automóveis virados e do incêndio na Estação, ela viu a multidão saindo da Biblioteca; eram estudantes, todos eles nus, as caras pintadas de bandeira e os pintos duros como mastros.

Tirou o espelhinho e começou a passar o batom.






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