sábado, 27 de março de 2010

Nº01: Negação do nada

Acho que vou carpintar a ausência do fato. Sim, a ausência, ou será que você não percebeu o silêncio distraído? A cadeira sem ninguém? Vou entalhá-lo, com um pedaço de aço afiado pelo meu tédio. Minha mãe sempre falou para que eu comesse feijão, ajudaria na gastrite restrita aos dias chatos, mas feijão no verão é como esse metrô lotado, cheio de joelhos suados e sem portas de saída. Eu prefiro a carpintaria, forço o amorfo a ser, deformo o ser com minhas dentadas. Quase um deus, ou uma criança com massinha de modelar. São esse cotovelos, essas bolsas falsificadas e alarmes de relógio que fizeram o fato não vir, só seus primos tortos, aquele irmão que gosta de parecer com ele, até seu cão, mas não ele; o fato quando chega a gente sabe. Vai ver ele morreu. Eu odeio o metrô, não por sua rapidez anunciada, sua limpeza formalizada ou o vão entre o trem e meu dia ruim, mas por lembrar a quantidade de pessoas que moram nessa cidade comigo, uma infinidade de fossas nasais que ignoram os fios de cabelos, mais de 100! caídos todos os dias carregando seus de-eni-ás que não valem a perícia técnica. Procuro, cartazes, tevê, chiados de trios-elétricos-humanos, mas nenhum fato e eu assim... Pego o pedaço brilhante, vejo sua forma lisa de rasgar madeira, riscar vidro, olho ao redor, ousado e afiado, nos olhos agora, não nos pescoços. Nos olhos estão a verdade carregada pelas veinhas, pelas remelinhas e encontro, descendo a escada, um tronco de nuvem entre os corrimãos, uma menina com cara de faça, cheia de cantos arredondados, uma seta que se move para o centro de sua útero e se raspa em jeans. Se ela me viu, não sei, se isso é o fato, agora não importa, mas o meu calendário ganha um dia marcado com “x”.

quarta-feira, 3 de março de 2010

aranha, três espécies de.






a)

Cada vez que se arranca uma pata de azaranha-do-araguaia (Argyroneta araguaiensis), crescem mais duas no lugar. De tanto os pequenos peixes se fartarem, nasce então um ouriço-de-água-doce (Echinometra araguaiensis).

b)

As teias da azaranha-da-serra (Latrodectus terribilis familiaris) podem cobrir a distância de vários metros entre árvores e resistem bem a estação das chuvas e aos furacões, mas não às brisas. Os biólogos já registraram todo tipo de objeto encontrado em suas teias: aviões de papel, bexigas, latas de cerveja e pequenos troquilídeos. Os colibris capturados serão parte do incomum processo de reprodução desta espécie de artrópode: incomum não pelo fato dos machos cantarem para atrair as fêmeas; tampouco pelas fêmeas devorarem os machos tão logo se conclua o acasalamento; nem pela inserção dos ovos nos cadáveres dos beija-flores; também não se deve pela mãe azaranha canibalizar a própria ninhada tão logo esta ecloda dentro da carcaça de ossos miúdos. O estranho é que, devorada a última cria, a azaranha mãe usa as quelíceras contra o próprio abdômen e devora seus próprios órgãos, fiandeiras, patas, os olhos e resseca-se acompanhada de suas vítimas em sua antiga teia.

c)

A azaranha doméstica (Loxosceles nostalgicus) é relativamente comum, armando seus ninhos atrás de porta-retratos, rolos de filmes preto e branco, álbuns de fotografia ou agendas telefônicas. Inúmeros casos fatais de picadas acabam registrados como suicídios, especialmente por ocorrerem na época de Natal, durante os aguaceiros de final de tarde, pois os relâmpagos e o som molhado da passagem de carros de família no asfalto estimulam os solitários a percorrerem o fundo das gavetas e guarda-roupas em busca de tempos menos silenciosos.













(fotografia do ano de 1932, por Dora Maar: "Les années vous guettent (Nusch Eluard)". Dora Maar foi amante de Picasso, e salvo engano sua história está presente no livro "Lendo Imagens", de Alberto Manguel, da Cia das Letras)