segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A. T. A. [Armada de Traficantes de Almas]

Armada de Traficantes de AlmasRumo ao concílio da seita, nuvens de tags despencaram num temporal de bits gelados e doídos que nublaram completamente o pára-brisas do meu pequeno veículo. Parei o blindado vermelho-fogo num posto abandonado onde a sorte me entregou apenas quatro zumbis. Eles protegiam um pacote de biscoitos sujo de fuligem (esquecido numa prateleira baixa) e uma bomba cheia de combustível. Graças a isso consegui escalar ao topo do Umbral ainda dirigindo.

Lá em cima, escolhi uma trincheira e desembarquei armado com uma escopeta de elétrons e uma faca santa. Cruzei o bloco que me separava do ponto de encontro sem gastar munição, degolando apenas dois cadáveres ambulantes no caminho. Não havia nada que atraísse os zumbis para o velho cinema abandonado naquela madrugada jubilosa. Entrei sem problemas, mas notei alguém encolhido nos fundos, à espreita.

Trocamos um cumprimento de longe e nos reconhecemos. Nosso xamã chegara antes de todos. Usara de sua magia. Era um bom amigo e me saudou com alimento puro. Logo depois chegou o metamorfo ainda em forma caprina. Os restos de zumbis escorriam dos chifres na cabeça. Quando se transformou de volta em humano, a sujeira desapareceu. Assumindo esse outro disfarce, ele parecia um profeta, um mendigo. Um andarilho como eu.

Terminamos a primeira fase juntos em tempo recorde e aguardamos nossos consoles individuais salvarem o progresso. Calibramos os controles disparando palavras contra um novo professor cruel, preparando a decolagem pelo portal que surgiria em breve. Nossa nova missão era seguir direto ao resgate da esposa do xamã e dos filhotes do metamorfo.

Assim fizemos.

A garota estava aprisionada no matadouro de um homem de carne, refém de um salame aproveitador que enfiara-lhe prazeres estranhos corpo adentro. Os filhotes do caprino estavam junto dela, balindo. Todos reunidos como recheio de sonho. Resgatamos o grupo e destruímos o homem de carne com plasma de realismo. Ele era o chefe de fase e fechamos mais uma etapa. A pontuação não rendeu a fase de bônus e vimos o velho jabuti lamber nossa musa entre as pernas bem diante de nós. Estávamos indefesos. Ela gozava e ria.

Apelamos para os grande mestres. Do Tarantino, recebemos uma espada samurai cada um e o Nolan abriu o portal que nos levaria à próxima missão, mas foi Lhosa quem nos tirou dessa enrascada. Ele refletiu nobreza na nossa linguagem com letras espelhadas em noite de sol à pino. Usei a metalinguagem da caldela de um jovem mestre para nos enfiar na terceira e última fase: uma masmorra abafada dentro do porão de uma velha padaria sagrada. Agora os zumbis vomitavam álcool sobre nós. Encharcados e entorpecidos, usamos nossa última reserva de alimento para recobrar energia e vencer os mortos que restavam com moedas eletrônicas.

Voltamos pra fora e, ao avistar o blindado rubro-sangue, soube que o jogo estava próximo do fim. Sacamos espadas para desafiar os caçadores de escalpos e a briga foi ótima. O xamã desastrado me feriu de leve no ombro, mas era um bom amigo e não merecia retribuição. Depois, ele sacrificou-se no último portal para nos levar até o grande chefão da fase final:

Você.

Salve o jogo e não desligue o console enquanto a luz da lua estiver piscando.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Atal.

Levantaram-se após o dilúvio, sacudindo a pele solta e espantando os musgos formados pelo tempo de chuva e choro derramado durante todo aquele ano.
Os nove pitagóricos sobreviveram embalsamados em azeite de oliva, mesmo alguns não suportando o cheiro e o gosto, que por acidente, entre um espreguiçar e um encolher, acabassem por roçar parte do corpo do outro em suas bocas e narizes.
Neste tempo de insônia povoada de sonhos, fora inevitável um esfregar de corpos, uma escorregadia mão besuntada de desejos. Parte deles, mesmo quando em sono profundo, alcançavam o nirvana do orgasmo raro e solitário. Eram toques sutis em tetas flácidas, ou maduras, raspas de masturbações galácticas, elevando penises flutuantes em água benta. Eram mulheres e homens. Eram corpos. Eram almas.
E dois anjos, em esfera distinta da plantação de tomates, cebola, queijo e azeitonas onde se encontravam, erguidos agora, zelavam por eles enquanto saboreavam chocolates de anis e isopor.
Agora, em novo princípio, conclamavam uma homogeneidade de encontros. Um despertar em velocidade oposta ao tempo disposto em suas vidas. Eram da mesma natureza. Logosóficos? O que entendiam do tempo vivido, não sabiam.
E os nove partiram a cada moda, a cada forma. E sabiam haveria tempos de chuva de novo, de plantações, de insônias e de despertar.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

nº 10: Apesar de seus olhos desesperados










Maria debruçada sobre João. João deitado ao pé da escadaria vê os degraus que o levariam à saída. Assim, sob esta perspectiva, desaparece rumo ao teto de concreto da estação. João se lembra da lua-de-mel em Cancún: de uma pirâmide pré-colombiana, onde os sacerdotes arrancavam corações e os arremessavam pulsantes escadaria abaixo. Sente algo grudento a molhar suas costas; percebe que é sangue quando encara Maria, Maria e seus olhos desesperados.

Já havia algo parecido com desespero em seus olhos enquanto ela descia a escada rolante. João subia os degraus da escadaria fixa, paralela a esta e escutou um gemido abafado que se aproximava. Ele estacou e passou a observar aquela menina de cabeleira vermelha. Maria aparentava vergonha de braços cruzados e uma mão ocultando a boca. Algo parecido com maquiagem borrava seu rosto e não escondia sinais do choro.

João é casado. Um cara sossegado, tanto faz se for por preguiça ou por amar Joana: não pula a cerca, nem tem uma tara especial por adolescentes. Mas por estar já um tanto alto pelos uísques e cervejas da festa no escritório, por ela ter escondido o rosto, por ela ter grandes e lacrimosos olhos azuis. João afrouxou a gravata e ficou parado ali no meio da escada, observando-a.

Maria estava encardida, mas tinha um estilo moderno, não sei se diria gótica, talvez classe média: uma calça preta justa sobre pernas magras, uma malha de listras grossas como faixa de pedestres, os cabelos lisos cobrindo a mochila de urso de pelúcia, mas em um conjunto meio desarranjado, imundo e amassado como um vira-lata. João pressupôs uma história triste, fuga de casa, pai violento, mãe repressora, um primeiro amor que terminou mal, como sempre terminam mal os primeiros amores. Lembrar de seu primeiro amor fez João continuar a subir a escada. Esqueceu-se da menina, mais preocupado em comprar dropes para disfarçar o bafo de álcool.

Entretanto, não havia primeiro amor na história de Maria. Devia ser meio-dia quando os caçadores invadiram sua casa. A mãe a sacudiu com força para acordá-la, dedo no lábio em gesto de silêncio e num sussurro ordenou que se escondesse na caixa d´água. “Vamos dar um jeito nestes homens maus”, assegurou seu pai. Maria assentiu silenciosamente, abraçou os dois e inspirou fundo querendo guardar o cheiro. Eles a ajudaram a subir pelo alçapão do forro. Ela caminhou com cuidado, desviando da luz que vazava entre as telhas, enquanto escutava os tiros e gritos. Arrastou o tampo e mergulhou naquele espelho frio e escuro da água.

Ficou ali, orando aquilo que lhe era possível orar, esperando. Maria empurrou o tampo e saiu de seu esconderijo. Os raios de sol se inclinaram e mudaram de lugar, passara-se uma hora ou mais. Ela se moveu silenciosamente para não alertar os caçadores. Contudo, um cheiro de fumaça e um brilho alaranjado se infiltrava pelas frinchas do forro: os homens atearam fogo à casa e esperavam do lado de fora, em um último ato antes do anoitecer. Ela abriu o alçapão e um sopro quente de fumaça atingiu seu corpo.

As chamas se espalhavam rapidamente. Maria pegou uma coberta velha e imunda esquecida ali e a encharcou na caixa d´água. Saltou no buraco do alçapão, esperando talvez uma morte breve sob as chamas, disparos de estacas ou pulverizada por água benta. Contrariando o esperado, já passava da meia-noite e ela sobrevivera, ferida, desamparada, mas ainda vivia. Ou algo parecido com isto. Pretendia se refugiar nos túneis do metrô até a noite seguinte, mas a fome a perturbava e seus olhos eram desejo e desespero e ela também viu João, João subindo as escadas em um balançar bêbado. Ela tenta se controlar, consegue se conter até o final da escada, mas como uma criança mal-comportada diante da mesa de doces, ela volta correndo, sobe os degraus de cinco em cinco e ataca João pelas costas. Ambos caem violentamente e antes que ele possa entender o que está acontecendo, já está deitado aos pés da escadaria, Maria debruçada sobre João, a boca e as presas imersas em sangue, e João murmura ao encarar o rosto dela.

-Eu sabia, eu sabia que era bonita.











Fonte imagem: esqueci. Foi de um tumbrl, acho que este.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cyberata

Cyberata, agosto de 2010.

Nos reunimos ao som incessante de drágeas motorizadas que continham em seus interiores essência e morte. Ao fundo, na esquina uma guitarra violava o sossego do encontro. Não que fosse um ritual, não que fosse sagrado – tampouco era profano –, mas havia a sede de meses tensamente cálidos, pinicando nossas gargantas; e havia na lista de criaturas (sempre tem uma lista, sempre tem criaturas) uma velha bruxa plantando pessoas em seu quintal na Cidade Ademar, conformando o desespero de homens vegetalizados pela modorra da existência e pelo medo de encararem sua nova condição: planta. A velha não imaginava que plantaria pessoas, mas queria isso, só não sabia ainda. Recebia de campanhas de doação de roupa etc, toda a sorte de peignoir. E há mais de trezentos anos, só se vestia assim. Principalmente, quando recebia a visita de mandrágoras feitas de sêmen enforcado e rijo. Talvez não tão rijo quanto aquele garoto – apodrecido ao nascer – que costumava mostrar-se pinto por baixo das mesas, elencando quais as meninas veria por dentro. Há quilômetros dali uma adolescente naufragava em mil, talvez milequinhentos litros d’água, rezando para que não a encontrassem, para que não acendessem as luzes, para que as frinchas do teto permanecessem inalteradas enquanto ela esperava o fim do incêndio. (O incêndio kriptoniano que a separaria para sempre de seus pais). Enquanto na estação de metrô João a esperava, ébrio de uísque e escritório, desfilando para si, sua filosofia vadia e as coisas que pensaria quando finalmente a visse, quando finalmente sentisse o toque de seus lábios e dentes afiados. Não era pedófilo, nem estuprador. Já o homem de Tundra, esse sim. Estuprava sua mente com doses cavalares de cus de mendigos rasgados – não mais de menininhas – e chegava todo dia em casa decapitado, levando consigo a lasanha que a mulher, também um vegetal, comeria antes de moer-lhe o espírito com as lamúrias da vidinha que levavam em Tundra. Valei-me meu Coletivo-dos-Anjos!, a trama temporal era tão intensa que gostava de dizer isso esperando por Tarik, senhor do tempo e dos crimes, novato na arte de matar pessoas mais de uma vez e também na arte de pegar sua mulher com outro, toda vez que voltava no tempo. Abdala o alertara sobre isso, eram companheiros, não podia ser diferente. Vigiavam crimes ocorridos, sem nunca poder mudar o resultado. Oxalá tivessem vindo conosco. Pelo menos, naquela hora, a guitarra seria calada a balas. Não tínhamos pretensão de demorar, mas queríamos. Queríamos voltar pra megalópole: uma bolha de aço transparente que flutuava sobre nossas próprias cabeças, nos dizendo não faça isso, depois de tanto tempo, não faça isso, compartilhe-se, vire pó, neblina, uma tenda no deserto, mas não faça isso, não deixe de lado a sua essência, soque-a numa drágea motorizada e siga o caminho da guerra da paz, é lá que estaremos todos, é lá que encontraremos as sombras, e a memória que é real, não essa, inventada toda hora, coberta de tosse e cigarro, de abortos e fodas mal dadas. A coisa ia nesse ritmo, e, eis que surge Joana, não a Joana que se casara com João por ele não ser pedófilo, nem estuprador – diferente do homem de Tundra –, e sim, Joana, a outra. A que media os níveis psicodélicos (psicotrópicos?) de nossa razão, necessária razão, e, entre um gole e outro de sumo de gente-vegetal (sim, ela conhecia a velha bruxa...) enquadrava-nos nos mais variados níveis de insensatez, porém sempre com o mesmo carimbo: anormal. Hmpf, se ela visse como se comportam os que faltaram, chamaria imediatamente os crono-meganas e desmantelaria nosso pequeno conchavo ideicônico. E não fosse o Dr. Nassar – treinador estilístico de Tarik e Abdala, co-criador da máquina do tempo diraquiana – ser o único mendigo anão remanescente na megalópole, ainda estaríamos reunidos, semi-ébrios de essência criadora, esquecendo-se de nossas drágeas motorizadas, de nossos ossos, de ranhuras e frinchas causadas pelo mal uso da existência, e felizes, ao nosso modo, mas felizes.

nº07: Negativo










João não pegou o metrô naquele dia. Não sentou no assento preferencial, destinado aos inválidos. Não perscrutou discretamente os demais passageiros. Não ouviu o condutor da composição anunciar sua estação. Não seria sua estação, porque não estava lá. Não desceu, não cruzou a linha amarela de segurança na plataforma ou as trilhas em relevo para as bengalas dos cegos. Não acompanhou a multidão no caminho para a saída. Não foi mais um, embora sempre tenha sido. Não subiu passo a passo os degraus da escadaria fixa. Não viu Maria do outro lado. Maria também não estava lá, então não haveria Maria para ver. Ela não desceu as escadas rolantes. Maria não viu João do outro lado. Nem esperou o trem chegar, nem ouviu seu sopro rugir no túnel, nem o freio rinchar nos ouvidos. O trem que não levou Maria sumiu na escuridão no caminho para as demais estações.

João e Maria que não pegaram o metrô naquele dia. Nunca esperariam encontrar seu amor no metrô. João e Maria que não estavam sozinhos, estavam um com o outro, em um não-lugar todo deles.












(Fonte clipe: Mrs Muddle - Bebê de Rosemary, por Twink)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Os de segunda em antologia



Quatro dos Escritores de Segunda compõem o time dos autores de Mecanismos Precários, antologia de contos organizada por Nelson de Oliveira e Claudio Brites, que será lançada no sábado 11 de setembro, num lançamento "bombástico" na sede da editora Terracota com direito a coquetel e show de jazz.

Esperamos poder contar com a presença de todos vocês. Compareçam!

terça-feira, 31 de agosto de 2010

nº09: Escadas






Que é das sombras?
Um balão vazio
Que é da memória?
O filho abortado
Que é das sombras?
O medo de fugir
Que é da memória?
Um beijo na avenida
Que é das sombras?
O natal no armário
Que é da memória?
O enlace dos ratos
Que é das sombras?
Um diálogo a nado
Que é da memória?
O intento do corpo
Que é das sombras?
O lance que não acaba
Que é da memória?
Um amor tão grande
Que é das sombras?
O pavor de me encontrar
Que é da memória?




(Tiago Araújo)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mister Mario Miranda Wong Quintana





Mister Mário Miranda Wong Quintana


Não era difícil ver aquele senhor nesta mesma praça alimentando aos pombos. Ele acompanhou a colocação de grades, portões e interfones sob as marquises onde anteriormente se amontoavam os sem-teto. Percebeu a troca dos bancos da praça por novos, ergonomicamente voltados a colocação de bundas e totalmente desaconselháveis a quem tentasse tirar uma soneca ali. O senhor Mário escreveu um poema criticando e denunciando o desprezo da sociedade por aquelas pessoas e o enviou aos jornais. Amarrou a mensagem na perna de seu pássaro favorito e o soltou pela janela. Apesar da assinatura graciosa de Miranda Passarinho, o responsável pelo envio da mensagem era Wong, uma de suas cinco personalidades identificadas e diagnosticadas posteriormente pelo renomado psiquiatra e militar da reserva Capitão Rodrigo Terra. Internaram aquele senhor no Instituto Psiquiátrico Forense para observação, e pararam de aparecer pombos mortos. Como nada é perfeito, também ressurgiram os mendigos na praça. Dormiam sentados, confortáveis em seu desconforto. Talvez nunca mais ouvíssemos falar dele, não fosse outra de suas personalidades, o paranóico fumante piromaníaco Quintana Boleadeira. Em meio a fuga de sua cela, ateou fogo nos colchões provocando o incêndio do edifício. Após uma noite de mortes, feridos e da maior fuga em massa de psicopatas e maníacos homicidas da história de Porto Alegre, a brigada militar e os bombeiros conseguiram controlar as chamas. Em meio aos populares que testemunhavam as operações de rescaldo, um ou dois internos hesitavam em voar para mais longe. Uma enorme coluna preta subia ao céu claro de inverno. Talvez pelo frio, um lamentou a demolição de sua antiga moradia. O outro acompanhava a fumaça que lembrava uma lava leve no ar e murmurou encantado por aquela manhã “As únicas coisas eternas são as nuvens.”

















(...)

sábado, 14 de agosto de 2010

terça-feira, 20 de julho de 2010

Geysa e o guêiser








Geysa não tinha pernas. Perdeu-as num acidente de trem. Eu não sei os detalhes. Ficava na cadeira de rodas vendendo flores e soldados a pilha que se arrastavam e atiravam. Era na Estação, a meio caminho entre a Biblioteca e o Estádio. À noite, seu tio desempregado a buscava numa Brasília. Dentro, ficavam tupperwares vazios, cheio das migalhas de doces e salgados vendidos. Ele a erguia no ar, os olhos curiosos secavam os cotos das coxas morenas sob os holofotes dos faróis de carros, viaturas e coletivos no trânsito congestionado de início da noite.

Um dia, o tio avisou: melhor não irmos amanhã. Imagina, amanhã não vai ter nada, fica sossegado. Ela emprestou um vestido vermelho da vizinha. Usou uma calcinha branca. Melhor perfume falsificado. O tio não quis levá-la quando a viu daquele jeito. E ela, "imagina, eles são todos gente de bem". A Brasília parou, o tio armou a cadeira de rodas e a banquinha. Ligou alguns dos soldados. Retirou as flores murchas. Colocou uma mais ou menos no painel do carro. Despediu-se.

Lá pelo meio da tarde, começaram as sirenes. Depois os cavalos e a tropa de choque. As pessoas começaram a correr no sentido do Estádio. Um cavalo acompanhava estes fugitivos, o pé preso no estribo e um policial arrastado no asfalto.

Ela desviou o olhar. De longe, depois dos automóveis virados e do incêndio na Estação, ela viu a multidão saindo da Biblioteca; eram estudantes, todos eles nus, as caras pintadas de bandeira e os pintos duros como mastros.

Tirou o espelhinho e começou a passar o batom.






(.)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

A busca pela espada d’A Tríade




Quer ganhar a réplica de uma espada templária?
Você pode conseguir participando da jornada em busca dos segredos de A Tríade, no RPGCON 2010.

A corrida pelos prêmios vai acontecer durante o evento. O campeão será presenteado com a verdadeira espada de André de La Rochelle, o último templário, e receberá o romance A Tríade, em casa, antes de todo mundo. E os nove que chegarem depois dele, não se arrependerão.
No entanto, a pesquisa pelos mistérios já começa agora.
Esteja preparado.

Qual é o meu domínio?

Para te ajudar, espalharam-se pistas por todos os cantos da ciberrealidade.
Além de serem aperitivos especialmente preparados pelos autores, cada uma delas também é um enigma.

Procure os textos e responda:

Qual o nome do anjo injustiçado?
Qual é a cor do manto do mercenário francês que serve aos Templários?
Qual o nome do Rei?
Que relíquia foi encontrada pelos nove?
Quem é o portador de pragas?


Então, envie a resposta de cada enigma para o email enigma@atriade.com.br
Para cada resposta certa você receberá um pedaço do pergaminho onde está escrita a resposta para o enigma principal: qual é o meu domínio?
Quem tiver a resposta desse primeiro segredo estará muito mais perto da conquista final durante o evento.

Entretanto é bom que saiba que, independente de qualquer resultado, sua jornada só está começando.

"Não tema nada, a morte é o destino do homem"

terça-feira, 29 de junho de 2010

Portal 2001

Planetas invisíveis: Diana



(Capa coletânea Alice in Chains)




(Abaixo: via Neatorama - Ephemicropolis)

The making of Ephemicropolis from Peter Root on Vimeo.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A vida

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ignorância





Não consigo escrever sobre amenidades. Tudo me é tão intenso e viral ou, seria visceral. A merda do cachorro na calçada, pregando na sola do meu sapato e todos dizendo ser um sinal de entrada de dinheiro. Levar meu carro para lavar e em seguida cair uma tempestade, mesmo que até a retirada do lava-rápido, o dia estivesse ensolarado. Descobrir a ausência da frente do som do carro, guardado no porta-luvas por uma semana. Até então, não sentira sua falta. E não conseguir lembrar-se de todos os lugares onde o carro ficou desamparado de mim. Eu não sei falar de amenidades. Meu salário que não chega ao fim do mês e as cobranças que chegam tão rápido. O tapaço que dei na cara de alguém no passado, voltando na cara de meu filho. Não consigo pensar em amenidades. A revista que assino e me chega quase todos os meses, porque algum vizinho viu a capa de seu interesse e a levou consigo. Deixar um depoimento no Orkut, íntimo e o receptor, o publicar. Levantar todos os dias à mesma hora e só perdê-la no dia em que não se podia. Eu não sei o que são amenidades.

(Denize Muller)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

terça-feira, 8 de junho de 2010

Paraíso Líquido

Caros correlegionários,
convido-os para o lançamento do livro Paraíso Líquido do escritor Luiz Bras.
O lançamento - na verdade, o primeiro Sarau de Ficção Científica do Brasil - acontecerá no próximo dia 26, no Espaço Cultural Terracota, sede da Terracota Editora, que fica na Avenida Lins de Vasconcelos, 1886. Próximo à estação Vila Mariana do Metrô.
Na programação do evento, haverá leitura dramática de trechos do livro, além de músicas consagradas da MPB que estão relacionadas ao universo da FC e aos textos do Luiz Bras.
Nosso staff:
Cláudio Brites - Voz (e insanidades psicomemoráveis)
Deise Sales - Vocal (e insanidades psicoparadisíacas)
Ely Guimarães - Vocal (e insanidades psicogênicas)
Thiago Camargo - Percussão (e insanidades psicodeleitáveis)
Tiago Araújo (eu) - Baixo, Violão (e insanidades psicolíquidas)
Além de é claro, o grande Luiz Bras, que irá autografar os livros do presentes e fará aparições psicofantásticas para nos mostrar que acima e abaixo de nossas vidinhas modorrentas, Mitra, o Libertador e Criador da Hiper-Realidade, observa atentamente Vanessa, Reiner, Sólido, Judite, Gasoso, a Paisagem e Jonas, o único que sabe que o fim do mundo será em 31 de Julho de 2013...
Nos próximos dias, postarei o convite oficial.
Abraços e até dia 26 de Junho!
Tiago Araújo
P.S. Dizem que o Paraíso não tem preço. Por isso, os livros serão distribuídos gratuitamente para todos que comparecerem.
Serviço:
Sarau de Lançamento do Livro Paraíso Líquido, de Luiz Bras
Onde: Espaço Cultural Terracota, Avenida Lins de Vasconcelos, 1886, (próx. à estação Vila Mariana do Metrô, linha azul, São Paulo, SP, Via Láctea, quadrante 2814 do hiperespaço)
Tel.: (11) 2645-0549
Quando: dia 26 de Junho de 2010
Horário: das 17h às 21h
Quanto: o evento será gratuito e os presentes receberão um exemplar do livro.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

As gêmeas Olsen (? – 1907)









Dentre as diversas atrações dos espetáculos circenses do século XIX que vagavam pelo interior dos Estados Unidos, uma das mais inesperadas era a presença das irmãs Taureias, Maria Ida e Mariana Adamanteia (é). Segundo os cartazes, Taureias (ê) seriam filhas de Centauros e Sereias; porém não dispunham de partes bestiais [1]. O nome verdadeiro delas evidenciava a origem latino-americana ou mediterrânea. Entretanto, adotaram o sobrenome artístico e escandinavo de “Irmãs Maria Ida e Mariana Olsen”. Para ilustrar sua imagem nos cartazes, usavam uma figura de Rainha de Copas, as tranças cor de feno unidas em um complicado nó central de inspiração mística. Sem dinheiro para as entradas, você talvez espiasse através de um buraco na lona. E então veria as duas. Embora apresentassem quatro membros, todos eram braços: elas não tinham pernas; quatro seios, mas faltavam as bundas; duas cabeças, ausência de culote e quadril e nenhuma vagina. Onde o ventre de uma terminava iniciava o da outra. Elas remetiam àquela serpente de duas cabeças, feita apenas de começos. O espetáculo delas tinha conotações eróticas: quando uma levantava a saia, lá estava a outra, de cabeça para baixo sob a primeira. E então, esta se virava e assim por diante, dando várias cambalhotas de tal forma que o público já não sabia mais onde era em cima ou em baixo. Vai ver, nem elas sabiam. Cantavam em um idioma crioulo misturando sueco, russo, norueguês, espanhol e nahuatl. Ao fim da música, elas tiravam as saias, deixando apenas os corpetes, sobre uma silhueta de poucas curvas. Os velhos vaqueiros ficavam loucos ao ver as duas se sucedendo e sacavam seus revólveres e disparavam para o alto. O apresentador interrompia o tiroteio: mãos abertas e cartucheiras na cintura. Só depois de cessados os tiros, cheiro de pólvora pelo ar, chamava ao palco “El Comanche Borracho”. Surgia então um homem barrigudo em trajes indígenas. As vaias iniciais eram substituídas por risos quando os espectadores percebiam que o homem estava bêbado[2]. Prendiam as duas a uma roda e esta era colocada em movimento. O apresentador pedia silêncio: o número era perigoso e exigia uma grande concentração. Para o índio, o palco era um navio e o mundo, a tempestade. Mas antecipariam o final do espetáculo para você, um empregado do circo o surpreenderia; sem piedade, o jogaria longe depois de uns catiripapos. Apesar dos tapas e tudo mais, ainda assim você se lembraria da beleza estranha delas, daqueles grandes olhos tristes. Eram obrigadas a devorar coco de criança, para que pela outra boca saíssem pétalas. Brigavam muito, por banalidades: era difícil conciliar a vontade de ambas em ficar na posição normal. Em geral, ficavam estiradas em uma rede, lendo revistas francesas. Permaneceriam no Circo Mantecón por muitos anos até a morte do marido em um acidente incomum envolvendo cangurus e borboletas [3]. Segundo os registros históricos, existiram apenas exemplares femininos de taureias. Acredita-se que os masculinos – devido à sua natureza - estrangulam-se dentro do ventre da mãe. Não possuíam umbigo [4] As Olsen foram as últimas irmãs Taureias registradas: faleceram em doze de dezembro de 1907 na cidade do San Juan, México, em idade avançada. Não deixaram filhos.


* * *


(1):
Não confundir com a Taureia (é): criatura similar ao Touro, mas com cauda de baleia, responsável pelo afundamento de inúmeros navios na costa malgaxe. Alguns especialistas consideram a criatura do Oceano Índico uma subespécie do Mermahuatauro, avistada raramente em mares ou céus nórdicos. Ver NADIR, Abu Abdallah Muhamad “Relatos de Naufrágios na Costa Oriental da África: de 1000 a 1500”. Tradução Kawan Zarif; Recife, Editora Nautilus, 1969

(2):
O célebre humanista francês Claude Beau Zeau Klaun (1881-1938) classificaria este riso como um riso de identificação, no qual a audiência reconhece a semelhança do falar e do gestual do palco com aqueles da vida real, sendo em geral paródico e de fundo preconceituoso. Sim, pois como bem se sabe ainda hoje os índios norte-americanos vivem em um processo de degradação social e à margem da sociedade, sendo o alcoolismo e o suicídio resultado comum desta situação. Ver KLAUN, Claude B.Z. “Qual é a graça? Explicando a piada: Por uma explicação e taxonomia do humor”; Tradução Jean Michel Jarret; Rio de Janeiro, Editora Antárctica, 1953

(3):
Para detalhes, ver: INNUIT, Jean Michel & LEDGER, Jonathan Custer “Homeopatia Arqueológica Ártica: memórias do gelo do mundo pré-histórico”, Tradução Aluísio Alonso; Porto Alegre; Editora Globo, 1987.


(4):
A ausência de umbigos ou de registro de outros casos neste século levou à suposição que as Taureias pudessem ser um resultado de uma intervenção cirúrgica radical. Fatos recentes parecem corroborar este ponto de vista. No início da década de 50, um cientista soviético chamado Vladimir Petrovich Demikhov conseguiu transplantar a cabeça, ombros e parte dianteira de um cachorro pequeno em um mastim adulto. Os animais sobreviveram por alguns dias. Durante os quinze anos seguintes, o cientista refez várias vezes o transplante, todavia em nenhum caso os cães sobreviveram por mais de um mês. No início da década de 70, um outro cientista, desta vez o médico norte-americano Robert J. White (posteriormente se tornaria consultor de Bio-ética do Vaticano) promoveu transplantes de cabeças entre macacos Rhesus. Veja o documentário “Dr. White’s Total Body Transplant”, disponível no You Tube ou (mais rápido) leia o conteúdo deste LINK (Via Sedentário & Hiperativo). A repercussão do caso chegou a inspirar filmes de qualidade discutível.
Diante destes fatos escabrosos e amplamente divulgados, chegou-se à uma nova teoria conspiratória, esta tradição tão norte-americana. Suspeita-se que as Taureias pudessem ser fruto de um experimento cirúrgico com a macabra intenção de criar monstros circences. Veja Ortiz, James Wido,”Aberrações Circenses no Oeste Americano após a Guerra da Secessão”, Tradução José Canjica Maupassant; Rio de Janeiro, Rio Gráfica Editora, 1979. Infelizmente, nove metros de lava cobriram o sepulcro delas depois da erupção do vulcão Paricutin em 1952, tornando impossível a verificação atual de tais hipóteses.







(imagem Hans Bellmer... La Poupeé...Links AQUI )

quarta-feira, 12 de maio de 2010

nº06: Escadaria






Quando a porta fechou, deixou um vazio. A mão espalmada na janela do vagão era a fotografia da despedida. Era o desconsolo. E a vida que se espalhava desordenada nos próximos 60 anos não poderia ser mais sem graça. Foi o que pensou naqueles poucos segundos que se congelaram entre o beijo e o baque das borrachas da porta.

Então mudou de casa, de caminho, de marca de cigarro e de óculos, de café para chá de boldo, de horário de trabalho e foi mudando o quanto pôde, mas a imagem era nítida: o beijo, o baque e a mão espalmada marcando o vidro. Só não conseguia deixar de ir uma vez por semana àquela plataforma, na segunda porta do terceiro vagão, com uma esperança de ela esta na porta. Era o que pensava. Ficava ali das 20h00 às 20h30, às quintas-feiras. Um pouco antes, ou depois. E nada acontecia.

Não era quinta, ou quarta, muito menos terça, mas numa segunda-feira que por acaso desembarcou ali, na plataforma. Esperou dez minutos, pouco mais, ou menos. Olhou no relógio duas vezes. O eco do nada se confundia com o rangido agudo dos trilhos. Subiu na escada rolante com a esperança de que ela o levasse para longe dali. E um olhar pescou o dele do meio daquela massa quase amorfa que descia apinhada. Quando os olhares se cruzaram, na mesma altura, quase se atracaram, num afã que beirava o obsceno. E se viraram. E se encararam. Até o fim.



(Petê Rissati.)

sábado, 8 de maio de 2010

nº05: Amazonas




A porta do metrô abriu, e, lentamente, João saiu do vagão. As pessoas corriam para entrar no trem, apressadas. João tossiu. Arrumou os óculos sobre o nariz e procurou as flechas de saída, uma vez que não havia fluxo de pessoas para se orientar. Alguns pareciam gritar para ele, mas João ouvia mal, coisas da idade. Entretanto, ele poderia ter notado no cheiro de algo queimando. Caminhou com vagar para a escada, o sapato chiando sobre o piso da plataforma. O trem partiu, a composição passando cada vez mais rápida a seu lado, o mundo corre e os velhos ficam para trás. Lá em cima, as Amazonas invadiam a estação. Os rinchos e cascos estalavam na calçada. Um policial tentara reagir e agora ele era arrastado no asfalto por uma guerreira a cavalo. A carcaça de um ônibus fumegava, elas jogavam roupas livros revistas dvds piratas para alimentar aquela chama. Apearam de seus corcéis, espadas em punho, escudos erguidos. Buscavam aqueles que tentaram fugir por ali. Disparavam setas e arremessaram lanças contra passageiros e funcionários. Alguém que filmava os eventos com um celular teve a mão decepada. Um grupo rodeava a bilheteria à prova de balas. Os funcionários se escondiam ali dentro, chamavam por ajuda. Golpes de maças contra o vidro desenhavam estranhos girassóis. Finalmente trouxeram o candeeiro para os archotes e as flechas. Queimariam eles ali, em meio ao dinheiro, às moedas, aos bilhetes de metrô. As pessoas se deitavam e se encolhiam, as Amazonas puxavam estes pelos cabelos, roupas, mochilas. Deixavam estes degolados, os gritos afogados na mancha lenta densa de sangue pelo chão. Outros corriam, mas as setas varavam a carne interrompendo a fuga. Uma mulher da limpeza reagiu com vassouradas e até acertou uma antes de ser talhada pelos sabres. Alguns eram poupados, acorrentados, empurrados para a rua onde ocorriam outros massacres. E João subia as escadas com dificuldade. Nem viu o cadáver que descia sobre a escada rolante, a flecha certeira nas costas. Maria, a assassina, caminhava lentamente em meio aos gritos: queria se certificar que aquele estava morto. O corpo chegara ao fim do percurso e era sacudido pelas ondas dos degraus da máquina como se fosse um afogado. Arco ainda na mão, retirou outra flecha da aljava e desceu a escada rolante para recuperar a seta sangrenta. Ignorou as instruções de segurança aconselhando a sempre segurar o corrimão. Maria percebeu o velho subindo as escadas. Se antes ele estava alheio a tudo, agora notou aquela seminua, um dos pequenos seios mutilados. Ela retesou o arco que cedeu com um rangido reclamação de corda e madeira. Quando os dedos afrouxaram e a seta saltou com um silvo no ar, Maria o reconheceu, talvez tarde demais:


-Vô..?






(Kate Moss. Não lembro onde achei esta foto)

terça-feira, 4 de maio de 2010

ATAraio veados




Sim, meus caros irmãos, meus estimados drugues... Era uma Sexta Feira Santa, dia que Nosso Senhor Bog pereceu na cruz, feriado que todos os decrépes precisam ficar em suas tocas, entatuzados pensando em todas as estrumadas feitas na vida... O governo emitiu o soviete de toque de recolher; como em todos os anos. Eu avisei isto a BB, mas ela não quis nem saber:

-Eu liguei para todo mundo e ninguém vai viajar no feriado. Traga umas bebidas.

Lógico que ninguém iria viajar: a previsão era de precipitação de cinzas por aqueles dias. Mas era aniversário da Claudinha e não ia furar. A gente chamava ela também de BB, não sei se era porque ela era uma lesbo novinha ou se era pela Bardot.

Usei as vias secundárias para evitar as barricadas das brigadas evangélicas. As ruas estavam vazias. Preferi estacionar um pouco distante e caminhar. A cada passo, meus sabogues levantavam um pó fino e mérsque que sujou as barras de minha calça. Esperei na esquina até certificar-me que não vinha ninguém e fui até a casa. Não queria dar o azar de cruzar com um milicente. De fora, era evidente a movimentação da festa, as golosses, as gargalhas, os govorites, o Amadeo bem gronque na vitrola, me lembrou a um destes filmos estarres de Natal que passavam na TV, não lembro mais qual.

Quem abriu a porta, foi a Krizzy. Estava bonita, a devótchca. Vestia – como sempre – uma roupa branca e estava dependurada no teto fazendo aquelas travuscas de vampiro. Ela se soltou de lá e feito uma gata virou no ar e caiu de pé no chão em um tumdum pesado.

-Meu querido, como está..?, com um sorriso onde se vinham os zubes pontiagudos pronto para uns plóches nos chieéques dos desavisados.

Cumprimentei o restante dos drugues e bretes de nossa alegre confraria horrorshow, além de uns liúdes que eu não conhecia. Estavam a Ester, o Thiago, Isidoro, Bruno, o Alê, o Dênis, e mais uns outros que desmemoriei. O Otávio ensinava à Claudinha a dar uns golpes de dratsa sobre o tatame: na hora, Otávio esgavaratava a BB, que reclamava da força. Não era muito justo um curumin dar porrada na cunhatã. Mas a gente conhecia o Otávio, de iarbos maiores que o gulliver, sempre querendo ser machão, quebrar tudo, um cara da pesada, já havia sido preso algumas vezes, mas sempre escapulia: seu pai se esfolava no Ministério e ele nunca ia deixar seu querido pimpo se dar mal numa Prisesta. A Claudinha, apesar de esganada, conseguiu perguntar:

-Você veio sozinho...? Cadê o Flavio?

-O Flavio ficou em casa, preparando declaração de IR.

A Fê se esmerava atrás do bar preparando molôcos e drencons. Deu para perceber que ela estava meio piânitsa depois de experimentar zerocentos coquetéis.

-Apenas pra ver se está bommm...

E me estalou um betchov na minha bochecha.

-Êêê... Você não sabe que meu negócio são os Tchelovéques, não?

-Ué, você precisa abrir seu gulliver a novas experiências...

-Niet, meu gulliver só quer saber de abrir outra coisa... rs

Nos fundos da toca, os casais estavam na maior Arena. Descobriram que 60% das separações aconteciam devido às tarefas domésticas. Bruno e Thiago se posicionaram de um lado do anel e Isidoro e Alê no outro. Eu não entendi bem qual era o grande problema. Achei que tinha algo a ver com unhas e o mal do saponáceo sobre a derme. O Dênis me explicou: aquele que cede não é homem.

A gente chamava Dênis de dedé e babúshca, aludindo ao fato de ser o único avô entre nós. Era uma brincadeira para encher seus gréjines. Dênis estava muito bem, mas porque não atormentá-lo um pouquinho...? Ele já fora um cara mais nervoso, mas de um tipo que saía para punchar e terminava punchado. Sua jina o abandonara e só agora depois que a filha deles tivera uma munhequinha, ele reencontrara sua família. Agora gargalha mais. Mas ele já confessou para mim: se rever o tchelovéque da jina arranca-lhe o cabo de panela e o arremete aos jacarés do Tietê.

O pessoal estava na maior confraria. Eu cantei Linda do Roupa Nova. Mas a Fê estava impossível, ela queria me fazer hetero:

-Eu SEI que você cantou para mim..., e segurava minha mão.

-Arre!

-Larga mão de ser bunda mole...

-Mas para você, o pau vai estar mole também.

-Cabo de panela não fica mole, meu drugue...

A Fê era uma menina muito tímida, tímida demais para estes nossos tempos tão exibicionistas. Baseado-se na lei de oferta e demanda, a timidez deveria valer mais hoje em dia. Não que sirva de alívio para quem é tímido. Porém, bastava uns goles de molôco e a moça queria baixar as calcinhas e oferecer a nijinsky pro primeiro que aparecesse. Ficava bebinha e taradinha. Por algum motivo misterioso, ela encarnou em mim, e não no Dênis. Perguntei a ela o motivo:

-De enrugadinho, só gosto do saco. Mas se VOCÊ estiver, eu encaro vocês dois...

-Eu só vou, se o Dênis for...

-Sai pra lá, de pinto de homem já basta o do meu neto na fralda...

Aí começaram os preparativos para o sarau cinematográfico. Funcionava assim, depois da Grande Queima de Livros, às pessoas só era permitido assistir aos filmos. Por mim, tudo bem, sempre odiei ler. No máximo, gibi do Conan. Então, não existiam mais saraus, recitaus, etc e taus. Então, a Claudinha e a Esterzinha inventaram esta história de sarau cinematográfico... A gente se reunia e relembrava o pedaço de um filmo que vejassistimos.

Otávio pegou sua rabeca e fez a trilha sonora... O Bode interpretou o discurso sobre a paixão que Sandoval declama em “El Secreto de tus Ojos”. Isidoro descreveu a abertura de “A Touch of Evil” de Orson Wells. Claudinha não negou seu lado BB e nos recitou “Et mes fesses? Tu les aimes, mes fesses?”. Otávio - óbvio - fez o nascimento de Zé Pequeno em “A Cidade de Deus”:

-Dadinho o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra.

Todos estavam empolgados com películas horrorshow e eu escolhi uma cena que gostei de um meia boca. Enquanto eu fazia a minha parte, a Fê esfregava seu pezinho descalço nas minhas costas.

-O Chamado 2. Muito pior que o primeiro. Mas há uma cena... há uma cena...Naomi Watts e seu filho vão fazer um passeio de final de semana em uma feira no bosque. Lembro ou imagino alguns brinquedos de parque de diversões. Nada muito espetacular. Talvez seja o equivalente a um destes parques de periferia que existiam antes do soviete anti-entretenimento. O menino está perturbado e não consegue se divertir. Faz frio. O menino vê entre a mata que arrodeia o local, uma sombra. Um veado. Naomi chama o garoto. Decidem ir embora. Discutem por algum motivo. O único bom motivo para haver continuação em um filmo de terror seria para revelar que o verdadeiro terror não acaba. Sempre ecoa. Nunca esqueço quando atropelamos um homem. Não esqueço o baque mudo da carne no metal. Mas isto não é o filmo, é outra história. A mãe e o menino discutem. Ela não presta atenção à estrada. O filho grita. Ela freia. O carro para. Há um veado. Bambi estragou os veados. Na Europa, ele ainda é um símbolo de virilidade. No rótulo do absinto, há um veado verde. Eles se batendo na floresta. Os chifres engalhados um no outro. Os machos morrem presos em seu ódio. O veado encara os ocupantes do veículo. Um outro animal se joga contra a porta do carro. Querem o menino. A janela quebra. Outros veados perfilam-se pelo acostamento. Eles se agrupam. Um terceiro se joga contra a porta da motorista. A porta amassa. Ela pisa no acelerador, o veado não sai da frente. Ela buzina. Os demais cercam-nos. A mãe avança, o carro sacode. O animal não cede. Ela acelera o carro e depois solta o freio de mão. O veado é empurrado até tombar sobre o capô. Dispara adiante. Os animais ficam ali, plácidos, vendo o carro ir embora.

Fui embora uma hora depois. Dou a desculpa das brigadas evangélicas. Foi a sorte: um vizinho fez a reclamação e a Krizzy precisou arrancar a cabeça de alguns distintos milicientes. Mas esta é outra história. Além disso, já não estava presente. Presente? Puta merda, esqueci o presente da Claudinha no carro!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Nº04: Os vivos e os mortos




As escadas são paralelas, uma para subir, outra desce. As pessoas tateiam o corrimão de borracha, medem a velocidade dos degraus de aço a correr sob seus pés, deixam-se levar pela máquina; antes corriam, apressadas para chegar ali, então se aquietam, se conformam, se calam, silenciam, calmas ou sufocadas pelas demais. Entregam-se ao percurso. Sem ter o que fazer, batucam a borracha preta, procuram o espaço adiante onde as pessoas desembocam, ou veem a paisagem mudar lentamente sem esforço dos pés, como se flutuassem, como se estivessem mortos.



Mas aquela outra gente que escala os degraus ao lado não admira paisagens, não há espaço para isto. Precisa-se acompanhar o ritmo das demais, o rosto baixo para os próprios pés e degraus, para a bunda logo adiante, o som sibilante dos passos como o de muitos relógios marcando tempos diferentes, ou o de muitos pedidos de silêncio. E o peso de tudo que se carrega está ali, evidente nas bolsas, pastas, mochilas, sacolas, compras, naquele esforço inútil de quem está vivo ou Sísifo condenado, porque no dia seguinte, se estará ali de volta, no caminho inverso de ir para o trabalho. Rebanho, cardume, enxame. Sobrevive melhor quem não está sozinho, dizem. Mentira: sobrevive melhor quem está vivo.



E ali ele levantou o rosto, querendo ver um além adiante, saber se ainda faltavam muitos degraus, e ela no ritmo suave e contínuo da máquina o viu também e os olhares trocados ali, um fitando o outro, sem piscar, como animais predadores ou cegos. A máquina continuou a impelindo e a multidão atrás o impediu de se voltar ou de parar. O rosto um do outro se misturou com a indiferença dos outros todos vistos naquele dia. Mas por aquele breve pequeno momento souberam. E acreditaram.




Música de Philip Glass






(De um comentário retirado do YouTube sobre Koyaanisqatsi - @pim80180 : " I dont think its frightening. But it makes you conscious of a bigger movement which an individual can not control. Its the march of humanity in which we all take part. Its been going on for thousands of years en will go on long after we have died. It is maybe that overwhelming fact that may be perceived as frightening. But in the end we are all small pieces of this movement. It is us, but we cannot control it. A deep paradox in our (short) lives" )

quarta-feira, 14 de abril de 2010

HaiKai




Outono!
A velha árvore, agora,
iguala-se às outras.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Nº03: perspectiva histórica






1.METRÔ



Hoje em dia, o trânsito é uma reclamação constante. Em Londres, em meados do século XIX, também. Engarrafamentos frequentes de carruagens e cavalos. Esterco se acumulava pelas calçadas. Pressão sobre governo para encontrar uma solução. Surgiu a ideia do metrô. Os primeiros túneis não contavam com um sistema adequado de ventilação. Os trens eram a vapor, uma permanente e sufocante fumaceira preenchia galerias e estações. Já durante a escavação, alguns operários chegaram a morrer intoxicados na fumaça das locomotivas. O barulho provocava surdez precoce em maquinistas, mais uma entre tantas outras doenças de natureza laboral da época. De início, os vagões eram sem janelas, caixotes apenas com portas de entrada. Naquela paisagem subterrânea, janelas para quê? Além disso, pressupunha-se uma melhor proteção para os passageiros. A claustrofobia do público obrigou-os a reinventar o vagão com janelas. Felizmente estes são tempos passados e aqui não é Londres (apesar do desejo de muitos). Dentro das composições, as pessoas adquirem um ar bovino, os olhos mortos, enjaulados em seus pensamentos, hipnotizados pelos monitores digitais, ensurdecidos pelo som dos arquivos MP3. Talvez os antigos engenheiros tivessem razão em retirar as janelas. Às 17:17, Maria chega à estação de metrô, alheia do mundo ao redor e a como ele chegara até ali, concentrada na longa volta para casa.


2.ESCADAS ROLANTES


O reduzido tempo de espera faz das escadas rolantes um excelente meio de transportar pedestres. A máquina garante o fluxo contínuo e veloz de um grande volume de pessoas, ao contrário de elevadores e escadarias. Modelos diferentes foram patenteados desde 1859, mas apenas em 1896 foi construído um operacional. Era um brinquedo de um parque de diversões norte-americano. Divertido? Talvez tanto quanto hoje em dia seria divertido um teleférico (ou um bondinho). Em 1900 surgiu a primeira escada rolante comercial; recebeu o primeiro prêmio na Exposition Universelle em Paris. Os degraus não possuíam ranhuras e provocavam escorregões. Para evitar quedas, um funcionário de uniforme auxiliava no “embarque” e “desembarque” dos pedestres (em geral, um moleque de uniforme, comum naqueles tempos. Ganhavam gorjeta, quando não um convite de alguma senhora mais assanhada.). Ainda hoje, todos os anos acontecem milhares de acidentes em escadas rolantes. Cadarços, cabelos e pedaços de roupas presos entre as engrenagens e degraus. Outros estão relacionados a sua má-utilização: pessoas que tentam montar no corrimão, crianças que correm no sentido contrário da escada. Recentemente, norte-americanos descobriram um novo jogo arriscado envolvendo escadas rolantes, o “escalator-spinning”. Mas a maioria das pessoas é obediente e trata as escadas rolantes com a deferência de quem merece ser carregado como peças em linha de montagem. Concentrada apenas no movimento da multidão a sua frente, Maria prepara-se para descer as escadas rolantes rumo à plataforma de embarque, às 17:18.



3.ESCADAS FIXAS



“Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis.”, já dizia de forma irretocável o escritor Julio Cortázar em “Instruções para subir uma escada”(1964). Faz muito tempo que o homem sobe escadas. As mais antigas escadarias construídas pelo homem remontam a seis mil anos antes de Cristo. Lugares altos eram e continuam sendo pontos estrategicamente importantes. As escadas forneciam meios de subir com um menor risco de desequilíbrio e ainda possibilitavam mãos livres. Como bem sabem os alpinistas, “descer” é tão ou mais arriscado que “subir” e as escadas concediam velocidade e agilidade. Para descer uma escadaria circular, o sentido era sempre horário e para subir, anti-horário, de forma a dificultar o trabalho de invasores e facilitar o dos protetores. A mão da espada era favorecida para quem descesse as escadas. A não ser que os invasores fossem canhotos, mas naquele tempo era uma obrigação ser destro. Mas João é indiferente a estas questões bélicas e de esquerda ou direita. Olha para o alto da escada sem razão aparente, talvez para confirmar que ele terá seus movimentos restritos ao do restante do rebanho a subir. E então ele a vê, de longe, descendo a escada rolante. À medida que avança, o rosto de Maria se aproxima e ele fixa-se nela, sob risco de tropeçar. As pessoas miram o chão ou a bunda de quem está adiante. João encara Maria. Ela está distraída, poderia deixar passar e acabar ali. Mas ela se surpreende com os olhos de João. Maria cora e abaixa o rosto. Talvez seja a timidez, talvez seja amor. Seja o que for, João decide ir atrás dela.


4.SENHORAS GORDAS



As senhoras gordas existiram desde sempre. Por toda a Eurásia, encontram-se pequenas figuras de pedra: são mulheres gordas, calipígias, regaços profundos, as formas arredondadas como bolas de sorvete sobre uma casquinha. Os braços finos, a cabeça sem rosto, coberta por tranças, ou chapéu ou olhos como os de um inseto. Pensava-se serem elas representações de alguma deusa feminina, a Grande Mãe, relacionaram estas imagens com a ideia de uma sociedade pré-histórica matriarcal. As imagens não ficam de pé, trazendo a suposição de se tratar de uma espécie de amuleto. Mas surgiram hipóteses nas quais estas figuras de pedra seriam brinquedos de homem, o equivalente ancestral da revista Penthouse. Os caçadores de mamutes usariam estes ídolos para se masturbar. Ou inserida na vagina em um ritual da fertilidade. Ou no rabo conforme a vontade. Nas paredes das cavernas, é difícil encontrar a figura humana bem representada. Alguns povos possuíam um senso artístico bastante desenvolvido: eram capazes de pintar com precisão e realismo animais selvagens; usavam o próprio relevo da parede da caverna para sugerir altos e baixos relevos. Já o ser humano era quase sempre esboçado, rascunhado, não se viam rostos ou pessoas. As imagens eram pouco melhores que bonequinhos de palitos. Apesar disso, em uma pedra no nordeste brasileiro ainda é possível reconhecer duas senhoras gordas. O povo argumenta ser possível acompanhar sua história como quem lê uma tira de jornal, apesar da crítica dos antropólogos que ridicularizam tais teses. Observa-se que estavam no caminho de um caçador. As imagens sugerem que o caçador não titubeou diante dos obstáculos obesos. Arremessou a lança contra as senhoras. Daquela vez, o animal escapou e as senhoras gordas sofreram o pior destino. A história sempre se repete, nunca da mesma forma. Vejamos, portanto, às 17:19, que duas senhoras gordas se interpuseram no caminho de João. Ele vê a Maria ir embora em um trem lotado para lugar ignorado, as costas dela prensadas contra o vidro das portas automáticas. As senhoras gordas prosseguem conversando, indiferentes. João gostaria de uma lança. Sem ela, volta a encarar a escadaria fixa, repleta de passageiros do trem que acabou de partir. São 17:22.





(=++=)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Aniversata



Foi um pequeno encontro de fósseis reminiscentes e outros não, estes tidos como normais. E neste pastoril compareceram: caprinos, dragões, bebês, doutores, soldadores, historiadores (todos com suas parelhas), um vampiro e um legado de outros bichos mais. Para que se desse tudo em perfeita orla, uma especialista em dependentes cármicos esteve lá, Fredo também, ora arrancando as penas, ora colocando-as no lugar. No serviço de bar um ator dividia tarefas com um caçador; serviam drinks afrodisíacos temperados a desejo e moral. E enquanto, o bebê envelhecia um jogo de estratégia, que consistia em capturar peças isoladas (blots, ou seria brots), iniciou-se. No quadrante exterior os produtores de fumaça caçavam razões, entendimentos químicos e pescoços, assim como outras partes dos corpos. Sobraram cachos de cabelos pelo chão. No quadrante interior, o pintor desenhava no violão música favorecendo as relações. A dança que se fazia, era a dança dos amantes sem distinção de espécies, raças e ideais. Festejou-se, profano e sagrado, fantástico e real, festejou-se a vida, cruzada em um traço longínquo,ancestral.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Nº02: paranela

sábado, 27 de março de 2010

Nº01: Negação do nada

Acho que vou carpintar a ausência do fato. Sim, a ausência, ou será que você não percebeu o silêncio distraído? A cadeira sem ninguém? Vou entalhá-lo, com um pedaço de aço afiado pelo meu tédio. Minha mãe sempre falou para que eu comesse feijão, ajudaria na gastrite restrita aos dias chatos, mas feijão no verão é como esse metrô lotado, cheio de joelhos suados e sem portas de saída. Eu prefiro a carpintaria, forço o amorfo a ser, deformo o ser com minhas dentadas. Quase um deus, ou uma criança com massinha de modelar. São esse cotovelos, essas bolsas falsificadas e alarmes de relógio que fizeram o fato não vir, só seus primos tortos, aquele irmão que gosta de parecer com ele, até seu cão, mas não ele; o fato quando chega a gente sabe. Vai ver ele morreu. Eu odeio o metrô, não por sua rapidez anunciada, sua limpeza formalizada ou o vão entre o trem e meu dia ruim, mas por lembrar a quantidade de pessoas que moram nessa cidade comigo, uma infinidade de fossas nasais que ignoram os fios de cabelos, mais de 100! caídos todos os dias carregando seus de-eni-ás que não valem a perícia técnica. Procuro, cartazes, tevê, chiados de trios-elétricos-humanos, mas nenhum fato e eu assim... Pego o pedaço brilhante, vejo sua forma lisa de rasgar madeira, riscar vidro, olho ao redor, ousado e afiado, nos olhos agora, não nos pescoços. Nos olhos estão a verdade carregada pelas veinhas, pelas remelinhas e encontro, descendo a escada, um tronco de nuvem entre os corrimãos, uma menina com cara de faça, cheia de cantos arredondados, uma seta que se move para o centro de sua útero e se raspa em jeans. Se ela me viu, não sei, se isso é o fato, agora não importa, mas o meu calendário ganha um dia marcado com “x”.

quarta-feira, 3 de março de 2010

aranha, três espécies de.






a)

Cada vez que se arranca uma pata de azaranha-do-araguaia (Argyroneta araguaiensis), crescem mais duas no lugar. De tanto os pequenos peixes se fartarem, nasce então um ouriço-de-água-doce (Echinometra araguaiensis).

b)

As teias da azaranha-da-serra (Latrodectus terribilis familiaris) podem cobrir a distância de vários metros entre árvores e resistem bem a estação das chuvas e aos furacões, mas não às brisas. Os biólogos já registraram todo tipo de objeto encontrado em suas teias: aviões de papel, bexigas, latas de cerveja e pequenos troquilídeos. Os colibris capturados serão parte do incomum processo de reprodução desta espécie de artrópode: incomum não pelo fato dos machos cantarem para atrair as fêmeas; tampouco pelas fêmeas devorarem os machos tão logo se conclua o acasalamento; nem pela inserção dos ovos nos cadáveres dos beija-flores; também não se deve pela mãe azaranha canibalizar a própria ninhada tão logo esta ecloda dentro da carcaça de ossos miúdos. O estranho é que, devorada a última cria, a azaranha mãe usa as quelíceras contra o próprio abdômen e devora seus próprios órgãos, fiandeiras, patas, os olhos e resseca-se acompanhada de suas vítimas em sua antiga teia.

c)

A azaranha doméstica (Loxosceles nostalgicus) é relativamente comum, armando seus ninhos atrás de porta-retratos, rolos de filmes preto e branco, álbuns de fotografia ou agendas telefônicas. Inúmeros casos fatais de picadas acabam registrados como suicídios, especialmente por ocorrerem na época de Natal, durante os aguaceiros de final de tarde, pois os relâmpagos e o som molhado da passagem de carros de família no asfalto estimulam os solitários a percorrerem o fundo das gavetas e guarda-roupas em busca de tempos menos silenciosos.













(fotografia do ano de 1932, por Dora Maar: "Les années vous guettent (Nusch Eluard)". Dora Maar foi amante de Picasso, e salvo engano sua história está presente no livro "Lendo Imagens", de Alberto Manguel, da Cia das Letras)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010